Marketing do Espírito
© 2005 Guilherme Azevedo- São Paulo (SP)

 

Em meio às minhas orações para todos os santos, clamando por um dia bom, menos triste, a caminho para o trabalho duro a bordo do trepidante coletivo, uma mensagem chamou a minha atenção quase sempre falha, ausente. Era mais um cartaz entre tantos que sou obrigado a ler, no bombardeio incessante por minha atenção e, principalmente, por meu poder (ainda que diminuto) de compra.

Mas dessa vez era diferente. Era o primeiro outdoor de uma igreja explicitamente publicitário, com discurso organizado e padrão visual arrojado. “Ser Renascer é...”. E seguia-se uma lista de serviços assistenciais prestados pela Igreja Apostólica Renascer, que assinava a peça, em letras pequenas, no lado esquerdo. O cartaz trazia a imagem de uma garotinha alegre, sorridente. O R de “Ser” do título fora estilizado, fundindo-se com a ilustração de um sol.

Foi uma revelação para mim, seguida de considerações para o futuro que já é, na verdade, o presente.

O mercado consumidor de almas é do mesmo tamanho do mercado consumidor geral, posto formado pelas mesmas pessoas. O desconforto com o mundo, sempre presente na história do homem, é particularmente maior em momentos de mudanças acentuadas, como o de agora. Estamos todos tateando no escuro, à espera de um sol que nos ilumine, essencialmente, por dentro. O público, portanto, está atento e ávido por mensagens e promessas de esperança e conserto do mundo.

A sacralização do dízimo, os tradicionais 10% do vencimento de cada alma destinados à sua igreja, significaria, economicamente, um décimo do PIB brasileiro (soma de todas as riquezas produzidas no país durante um ano), que foi de R$ 1,769 trilhão em 2004. Com uma renda per capita de R$ 9.743,00 (dado também de 2004), cada alma brasileira poderia dedicar às obras de Deus na Terra, em média, R$ 974,30 num ano. Valor nada desprezível dedicado a uma única “marca”.

A organização do discurso com técnicas publicitárias de persuasão, com promessas tangíveis, para atrair mais fiéis-consumidores, é o passo previsível para garantir espaço nesse mercado altamente lucrativo. Tudo leva a crer que o outdoor da Renascer seja apenas o passo inicial pela busca “profissional” do seu fiel, o início de uma estrutura de marketing para se relacionar mais efetivamente com ele.

Igrejas hoje possuem volumes de recursos grandes, detêm canais de televisão, rádios, jornais, portais na Internet e vêm falando há tempos com seu público. O mercado da fé rende muito. Os produtos de devoção, relicários, santinhos, velas, escapulários, pôsteres, fotos de santos e padres que se transformaram em ídolos movimenta quantias fabulosas. Em certas igrejas, existe hoje até serviço de estacionamento VIP, com manobristas no adro. É preciso facilitar o acesso, trazer comodidade ao seu consumidor.

Igrejas transformaram-se, pois sim, em anunciantes de porte, que sabem que a publicidade é, mais do que nunca, a alma do negócio, com o perdão do trocadilho. Não é difícil imaginar o futuro: “Agência X conquista Igreja Renascer”; “Agência Y fica com below the line da Igreja Universal”; “Agência Z conquista relacionamento da Igreja Católica”. E os apelos e promessas dos anúncios: “Igreja X. Seu caminho mais curto para o Céu”; “Paz, saúde e prosperidade aqui e agora. Não espere o Céu”; “Oferta imperdível: desconto de 10% no seu dízimo! Chegar ao Céu agora custa pouco”; ou este aqui, que já existe e salta à nossa frente no site da igreja em questão como insinuante pop-up: “Venha ser Renascer. Um sol na sua vida”.

A mercantilização da fé já é uma realidade, como é uma realidade a mercantilização do amor, do afeto. As Cartas de Indulgência, documentos vendidos pela Igreja que significavam o perdão de Deus para os pecados humanos e davam a garantia de um lugar no céu - e contra as quais se debateu Martinho Lutero -, parecem próximas de um relançamento. “Envie a sua Carta de Indulgência pelo correio. É grátis!”. Terá também uma versão on-line, em formato pdf, para imprimir em casa. Mas poderá haver também campanha séria, informativa, que estimule uma discussão qualificada sobre ética, igualdade, solidariedade, fraternidade, com programas de relacionamento estruturados, com recompensas por boas ações. Será?

O caminho parece irreversível. Mas como não cair no conto do vigário, na força da persuasão pura e simples, como não rezar para santo de pau oco? A saída parece ser o estudo nas escolas de uma disciplina sobre como se proteger da mídia. Ensinar a cada um de nós, crianças e adultos, a olhar criticamente para os modos e usos da mídia, na análise e desconstrução do discurso do glamour e do poder. Não daremos ouvidos, assim, a falsos profetas - nem que nos prometam o céu ou o Paraíso na Terra.

 

Guilherme Azevedo ([email protected]) é jornalista e consultor de textos da Datamidia,FCBi

 

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