Transeuntes olham aquele quadro
Colocando-se a certa distância
Da cena impressionista
Apertam os olhos
E se perguntam o que o artista quis expressar
Nem a arte os toca
Julgam a Deus
O Estado neste estado
Atravessam a rua
Levando consigo todas as soluções
Fora de si
Assim caminha a desumanidade
Lá fora o cão ladra,
Outro late,
A vizinha de cima geme...
A cadela da vizinha debaixo uiva...
Ele não consegue dormir
Tenta se estatelar nos braços de Morfeu
Com a leveza de um salto de bailarina
E se vê aterrizando no chão
Luta com os travesseiros
Enrola-se nos lençóis
Abafa-se no edredom
E o cão, ladra, ladra,
Tecendo uma rede de latidos
Reunindo todos os cães da redondeza
E os cães ladram, ladram
Enquanto o leite quente
Transborda da leiteira
Levando-o a insanidade
E grita para a cadela da vizinha calar
Da janela vem a corrente de ar
Sua cabeça vira um capacete
De dor frontal – a sinusite
Toma um gole d´água
Não adianta
O cão ladra, a vizinha geme, a cadela late
Toma outro gole
Agora etílico
Muitos outros goles
A matilha do bairro late
As cadelas e as vizinhas uivam ou gemem
Tudo que era tão claro se torna...
Uma viagem ao labirinto
Tudo gira
Gira dentro da sua cabeça
Os sons o embalam
Abre a porta pro mundo
Tropeço chega até a esquina
Não ouve mais nada
Gira dando-se uma rasteira
Cai ao lado da criança
Exausto da embriaguez
Sem sentidos
Sem sentido
Pequena mão apieda-se
Daquele que caiu de cima
Cobre-lhe o frio enraizado na calçada
Dividindo seu cobertor roto
Numa metade infantil
Que mesmo sendo muito
Não conseguia agasalhar-lhe
O frio de sua alma
Que só ouvia fora de si
Babando...
Ladrava
Gemia
Uivava
Tinha dentro de si
A raiva
Acordou com o sol brilhando para ele
Com olhos remelentos e hálito de guarda-chuva
Agarrado ao pescoço de um cachorro pestilento
Que o lambia com fidelidade canina
Olhou as pernas da transeunte
Vizinha que gemeu
Viu passar sem coleira
A cadela da vizinha que latia
Seguida por cães no seu rastro
Sem latir
A matilha a luz do dia
Ganhava a calçada
Que ora ele dividia
Na metade do cobertor
Perto de si
Um corpo inteiro de criança
Que não dormia
Nunca sonhará
Sem futuro
Jazia
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A noite choveu
Não havia nenhuma estrelinha nova
Para lhe inspirar a poesia póstuma
Não orou por não saber seu nome
Deixou a luz acesa
Com medo daquilo em que não acredita
Mas sentiu-se mais seguro
O silêncio era ensurdecedor
Não havia nem mesmo um cão a ladrar
A vizinha debaixo viajou com a cadela
E a de cima...
... Talvez...
Aguçou o ouvido e esperou
Com toda esperança
Esperou
Só um único gemido
Esperou...
Suando frio
Escondeu-se embaixo das cobertas
Esperou...
Esperou...
E ao primeiro gemido
Respirou aliviado
Enfim... dormiu.
Pela manhã ao ligar o telejornal
Pressentiu que a moça do tempo
O brindaria com a previsão almejada
- Tempo de cães a ladrar, vizinhas a gemer e cadelas...
Muitas e muitas cadelas,
Vizinhas...
Pediu a Deus que dê cobertores maiores para as criançinhas de rua.
Sei que deve parecer meio esquisito,
Mas foi assim mesmo que falou para com Ele.
Esse é mesmo o seu jeito
À noite, curioso, olha o céu estrelado
Sabe, por seu nível superior,
Que muitas já nem existem mais,
O que importa?!
A quem importa?!
Fecha a janela
Deixa-as, mais uma vez,
Do lado de fora.
No fogão a leiteira desperdiça o leite...
Senta-se e chora
Seco e fétido, gruda
Limpa
Seca
Enxuga e
Guarda-se.
Abre a geladeira
Vê a luz
Revelação
Faz-se o milagre da multiplicação
Enche uma sacola com o sortido resto
Num misto de euforia fanática transcedental
E sai pelas esquinas da vida distribuindo
Seu variado farnel
Badejo da semana retrasada
Costelinha com agrião
Maionese esverdeada
Coradas com goiabada cascão
Feijoada e camarão
Mas outros restos de refeição
Fora da validade
Fez das tripas coração
Matou vários mendigos
Com a melhor intenção
O leite mais uma vez esquecido,
Transbordou lá no fogão
Não importa
Sentiu-se humano
Feliz e realizado
Abriu a janela
Suspirou fundo
Poético e inspirado
Nunca tinha visto na vida
Um céu assim tão estrelado. |