O Cão Ladra: É Natal !
© 2004 Solange Parpinelli Breder

Noite fria
Na esquina
Frio intenso
Criança a tilintar
Quem sabe dorme
Sem álcool
Sem cola nem escola
Rima pobre
Sem futuro
Sem sonhar
Vence mais um dia
Um dia de cada vez
Parabéns!

Transeuntes olham aquele quadro
Colocando-se a certa distância
Da cena impressionista
Apertam os olhos
E se perguntam o que o artista quis expressar
Nem a arte os toca
Julgam a Deus
O Estado neste estado
Atravessam a rua
Levando consigo todas as soluções
Fora de si

Assim caminha a desumanidade

Lá fora o cão ladra,
Outro late,
A vizinha de cima geme...
A cadela da vizinha debaixo uiva...
Ele não consegue dormir
Tenta se estatelar nos braços de Morfeu
Com a leveza de um salto de bailarina
E se vê aterrizando no chão
Luta com os travesseiros
Enrola-se nos lençóis
Abafa-se no edredom
E o cão, ladra, ladra,
Tecendo uma rede de latidos
Reunindo todos os cães da redondeza

E os cães ladram, ladram
Enquanto o leite quente
Transborda da leiteira
Levando-o a insanidade
E grita para a cadela da vizinha calar
Da janela vem a corrente de ar
Sua cabeça vira um capacete
De dor frontal – a sinusite
Toma um gole d´água
Não adianta
O cão ladra, a vizinha geme, a cadela late
Toma outro gole
Agora etílico
Muitos outros goles
A matilha do bairro late
As cadelas e as vizinhas uivam ou gemem
Tudo que era tão claro se torna...
Uma viagem ao labirinto
Tudo gira
Gira dentro da sua cabeça
Os sons o embalam
Abre a porta pro mundo
Tropeço chega até a esquina
Não ouve mais nada
Gira dando-se uma rasteira
Cai ao lado da criança
Exausto da embriaguez
Sem sentidos
Sem sentido

Pequena mão apieda-se
Daquele que caiu de cima
Cobre-lhe o frio enraizado na calçada
Dividindo seu cobertor roto
Numa metade infantil
Que mesmo sendo muito
Não conseguia agasalhar-lhe
O frio de sua alma
Que só ouvia fora de si

Babando...
Ladrava
Gemia
Uivava

Tinha dentro de si
A raiva

Acordou com o sol brilhando para ele
Com olhos remelentos e hálito de guarda-chuva
Agarrado ao pescoço de um cachorro pestilento
Que o lambia com fidelidade canina
Olhou as pernas da transeunte
Vizinha que gemeu
Viu passar sem coleira
A cadela da vizinha que latia
Seguida por cães no seu rastro
Sem latir
A matilha a luz do dia
Ganhava a calçada
Que ora ele dividia

Na metade do cobertor
Perto de si
Um corpo inteiro de criança
Que não dormia
Nunca sonhará
Sem futuro
Jazia



A noite choveu
Não havia nenhuma estrelinha nova
Para lhe inspirar a poesia póstuma

Não orou por não saber seu nome

Deixou a luz acesa
Com medo daquilo em que não acredita
Mas sentiu-se mais seguro

O silêncio era ensurdecedor

Não havia nem mesmo um cão a ladrar

A vizinha debaixo viajou com a cadela

E a de cima...

... Talvez...

Aguçou o ouvido e esperou
Com toda esperança
Esperou

Só um único gemido
Esperou...
Suando frio
Escondeu-se embaixo das cobertas
Esperou...
Esperou...
E ao primeiro gemido
Respirou aliviado
Enfim... dormiu.
Pela manhã ao ligar o telejornal
Pressentiu que a moça do tempo
O brindaria com a previsão almejada

- Tempo de cães a ladrar, vizinhas a gemer e cadelas...

Muitas e muitas cadelas,
Vizinhas...

Pediu a Deus que dê cobertores maiores para as criançinhas de rua.

Sei que deve parecer meio esquisito,
Mas foi assim mesmo que falou para com Ele.
Esse é mesmo o seu jeito

À noite, curioso, olha o céu estrelado
Sabe, por seu nível superior,
Que muitas já nem existem mais,
O que importa?!
A quem importa?!

Fecha a janela
Deixa-as, mais uma vez,
Do lado de fora.

No fogão a leiteira desperdiça o leite...
Senta-se e chora

Seco e fétido, gruda
Limpa
Seca
Enxuga e
Guarda-se.

Abre a geladeira
Vê a luz
Revelação
Faz-se o milagre da multiplicação

Enche uma sacola com o sortido resto
Num misto de euforia fanática transcedental
E sai pelas esquinas da vida distribuindo

Seu variado farnel

Badejo da semana retrasada
Costelinha com agrião
Maionese esverdeada
Coradas com goiabada cascão
Feijoada e camarão
Mas outros restos de refeição
Fora da validade
Fez das tripas coração
Matou vários mendigos
Com a melhor intenção

O leite mais uma vez esquecido,
Transbordou lá no fogão
Não importa
Sentiu-se humano
Feliz e realizado
Abriu a janela
Suspirou fundo
Poético e inspirado
Nunca tinha visto na vida
Um céu assim tão estrelado.

 

Solange Parpinelli Breder ([email protected]) é escritora e diretora da Callmunity, atua na área de Qualidade e Responsabilidade Social.
Visite seu blog em www.voxactiva.com.br
 

Privacidade | Segurança
Olavo Parpinelli